Abuso espiritual

Entrevista com Bob Kellemen realizada por Tim Challies

Nos últimos anos, na leitura de blogs e outros sites, tenho me deparado muitas vezes com o termo “abuso espiritual”. É um assunto que parece ter ganhado certa extensão, com blogs inteiros dedicados a ele. O termo descreve uma realidade clara − em nosso mundo contaminado pelo pecado, onde quer que haja autoridade espiritual, pode haver abuso de autoridade algumas vezes. No entanto, também estou preocupado com o fato de que o termo pode ser usado de forma ampla demais se não o definirmos cuidadosamente. Afinal, os líderes têm de liderar e, às vezes, eles precisam liderar de forma que pode não ser popular. Tenho certeza de que há momentos em que qualquer atuação de uma liderança, e especialmente uma atuação corretiva, pode ser percebida como abusiva.

Desejoso de aprender mais sobre o assunto, procurei Bob Kellemen, diretor executivo da Biblical Counseling Coalition. Tivemos um breve diálogo e espero que ele possa lhe ser útil.

TC : Recentemente, com bastante frequência, tenho me deparado na internet com o termo “abuso espiritual”.

BK : Eu também, Tim. De fato, em resposta a essa questão, fiz uma mini-série de quatro posts no blog de RPM Ministries com o título de Liderança Espiritual e Humildade nos Relacionamentos (Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4). Diante de toda a conversa na blogosfera cristã sobre “líderes cristãos espiritualmente abusivos” e “líderes cristãos que praticam o bullying“, comecei a pensar: “Como o Apóstolo Paulo respondia àqueles que discordavam dele e o criticavam?”.

TC : O abuso espiritual é certamente uma preocupação legítima para os cristãos. Há uma longa história de liderança abusiva dentro da Igreja, e os cristãos têm o direito de identificá-la e reagir a ela.

BK : Concordo com você, Tim − a história da Igreja, antiga e atual, demonstra a legitimidade da preocupação com a liderança abusiva. Ainda mais importante, e estou certo de que você concordará comigo, é o fato de que temos fortes razões bíblicas para nos preocuparmos com o abuso espiritual. Jeremias pronunciou um “ai” sobre os pastores que não se preocupavam em cuidar do rebanho de Deus e intimidavam aqueles que deveriam liderar (Jr 23.1-4). Jesus pronunciou sete “ais” sobre os mestres da lei e os fariseus por sua liderança espiritualmente abusiva (Mt 23.1-39). Em Mateus 20.20-28, Jesus advertiu Seus discípulos contra a liderança orgulhosa, arrogante e egocêntrica, que reflete mais o “eu mando aqui”, característico do mundo, do que a liderança de servo do Senhor Jesus. Pedro aprendeu bem esta lição e exortou os líderes espirituais para que fossem pastores do rebanho, dispostos a servir, não como dominadores, mas como modelos (1Pe 5.1-6).

TC : Uma preocupação, porém, é que este termo precisa ser devidamente definido. Digo isso porque qualquer tipo de disciplina amorosa pode parecer abusiva a quem passa por ela ou a quem assiste de longe. Provavelmente, todos nós já vimos um exemplo disso quando uma criança é disciplinada pelo pai. A ideia parece se alinhar com Hebreus 12.11. Ao mesmo tempo, certos estilos de liderança podem ser abusivos.

BK : Excelente ponto … e ele também “equilibra” essa discussão. Já pastoreei três igrejas e atualmente tenho um ministério pro bono direcionado para os pastores e suas famílias. Sou, portanto, “pró” pastores. Estou certo de que nós dois já vimos casos de “abuso pastoral” − o abuso de pastores pelo povo de Deus. Evidentemente, isso contraria muitas passagens bíblicas como Hebreus 13.7 e 13.17. E, às vezes, esse “abuso pastoral” acontece quando os pastores desejam sinceramente “falar a verdade em amor”, mas, como você disse, as pessoas interpretam erradamente a sua liderança e a taxam de abusiva e coerciva.

TC : O que eu gostaria de lhe perguntar, então, é se você tem uma noção da extensão do abuso espiritual dentro da igreja para, em seguida, trabalhar em direção a uma definição do mesmo. Provavelmente, seria útil também determinar o que não constitui abuso espiritual.

Então, vamos lá. Você concorda que o abuso espiritual é uma preocupação legítima dentro da igreja?

BK : Conforme apontei, tanto na história da Igreja quanto na Palavra de Deus está claro que o abuso espiritual é uma preocupação legítima. Para abordar a extensão desta preocupação, podemos considerar a causa do abuso espiritual. Podemos dar uma definição de abuso espiritual, e vamos logo fazer isso,  mas creio que seja útil dar, em primeiro lugar, uma descrição ampla e bíblica do que está por trás de todos os conflitos na igreja.

Tiago nos ajuda quando ele faz a pergunta diagnóstica: “De onde vêm as guerras e contendas que há entre vocês?” (Tg 4.1a). Sua resposta? ” Não vêm das paixões que guerreiam dentro de vocês? Vocês cobiçam coisas, e não as têm; matam e invejam, mas não conseguem obter o que desejam. Vocês vivem a lutar e a fazer guerras. Não têm, porque não pedem. Quando pedem, não recebem, pois pedem por motivos errados, para gastar em seus prazeres. Adúlteros, vocês não sabem que a amizade com o mundo é inimizade com Deus? Quem quer ser amigo do mundo faz-se inimigo de Deus” (Tg 4.1b-4). Podemos sempre encontrar a origem dos conflitos na igreja, seja o abuso espiritual  por um líder ou o abuso espiritual de um líder, no nosso coração adúltero − um coração adorador que deseja quaisquer outras coisas mais do que deseja a Deus.

Vamos ver o que acontece na prática − e Palavra de Deus é sempre relevante e prática. Um membro da igreja desafia a minha liderança. Este é um momento em que devo fazer uma escolha espiritual. Posso responder de forma humilde e piedosa como Paulo fez em 2Coríntios 6.11-13. E responderei com aquela mesma atitude que Paulo mostrou em 1Coríntios 4.1-5 quando seu desejo e sua preocupação fundamental eram agradar a Cristo em lugar de agradar a outros. Paulo vivia para uma audiência de Um. Responderei de uma forma humilde e piedosa se minha atitude for a mesma de Cristo em Filipenses 2.1-8 − uma atitude que glorifica a Deus e não é egocêntrica.

Por outro lado, se eu adoro e “necessito” de sua “aprovação”, se eu me agarro ao falso ídolo de ser visto como um líder forte, se a motivação do meu coração está centrada em mim e na minha glória, então responderei de forma arrogante e ímpia (espiritualmente abusiva). Meu viver será “para agradar a homens” (Ef 6.6 ARA). A extensão do abuso espiritual é tão larga e profunda quanto a profundidade da capacidade do nosso coração para cavar cisternas, cisternas rotas que não retêm água, em vez de beber de Deus, o manancial de águas vivas (Jr 2.13).

TC : Com isso em mente, como você definiria abuso espiritual?

BK : Como este é um post de blog e não um livro nem um trabalho acadêmico, vamos considerar isso uma “definição em andamento” ou, como costumo dizer aos meus alunos, “minha melhor tentativa neste momento…”

Abuso espiritual é uma inversão de papéis no âmbito espiritual, em que um líder cristão exige sutilmente que seus liderados existam para atender às necessidades dele (Tg 4.1-4) em vez de se apegar ao Grande Pastor e imitá-lO no pastoreio do povo de Deus (At 20; 1Pe 5, 1Tm 3, Ef 4). Em lugar de estabelecer relacionamentos como um líder servo, ele se coloca em primeiro lugar e domina sobre os demais (Mt 20.20-28, 1Pe 5.1-6), não para o benefício daqueles que lidera, mas para o benefício próprio. Em vez de falar a verdade em amor e de ministrar graça e verdade (Ef 4.11-16, 29; Cl 4.3-6, Tt 2.10-12), ele intimida, julga, condena, envergonha e culpa suas ovelhas sem levar em conta o bem-estar espiritual delas (Jr 23.1-4, Mt 23.1-39).

Evidentemente, boa parte desta definição funcional aponta para as “motivações do coração”. Um liderado deve ser muito cauteloso no julgar as motivações de um líder espiritual. Em muitos aspectos, portanto, o peso recai sobre o líder em matéria de conhecer o próprio coração por meio de uma caminhada íntima com Cristo (Hb 4.12-13) e de pessoas que o conheçam bem de perto para ajudá-lo a avaliar seu coração (Hb 3. 12-19; 10.24-25).

Existem “sintomas” identificáveis que poderiam apontar para um coração que se move em direção ao abuso espiritual. Eles incluem ações e atitudes como:

  • usar sua posição de líder espiritual para controlar ou dominar outra pessoa;
  • anular os sentimentos e as opiniões dos outros;
  • usar a autoridade espiritual como defesa para reforçar sua posição e “necessidades” de líder;
  • considerar-se acima de qualquer questionamento;
  • tachar de errada e rebelde a pessoa que o questiona, mudando sutilmente o foco e transferindo a culpa. Presumir que os questionamentos venham de um espírito maldoso e não de uma simples tentativa honesta de estabelecer o diálogo. Presumir o pior do outro e o melhor de si mesmo;
  • usar rótulos que podem incluir acusações como: “Você é rebelde”, “Você é desrespeitoso”, “Identifiquei um tom de amargura e um espírito crítico”, “Você é espiritualmente e emocionalmente imaturo”. Estes rótulos amontoam condenação sobre quem os recebe, em vez de oferecer conselhos sábios e feedback construtivo;
  •  interpretar a autoridade espiritual como sinônimo de que seus pensamentos e opiniões são supremos.

Você também pediu, sabiamente, que ponderássemos sobre aquilo que não constitui abuso. Aqui estão algumas comparações introdutórias.

  • Não é abuso quando um líder espiritual fala a verdade em amor e confronta o pecado de forma graciosa. É abuso, no entanto, se o líder procura defender a si mesmo e envergonha ou menospreza os outros.
  • Não é abuso quando um líder espiritual usa seu julgamento criterioso e escolhe ir contra a opinião de um liderado. É abuso, no entanto, se o líder usa sua visão para desvalorizar e menosprezar os outros.

Devido à complexidade dessas questões, e também à complexidade do coração humano, se um líder espiritual e seu liderado não conseguem chegar a um acordo sobre a natureza do relacionamento, é sábio pedir que outras pessoas piedosas ajudem a avaliar o que está acontecendo (Mt 18:15-17).

Há muito mais a se dizer, mas o que vimos até aqui deve, no mínimo, despertar a troca de ideias.

Fonte: Challies.com
Original: Spiritual abuse