Robert Kagels
Na nossa cultura, a palavra coração é geralmente associada às nossas emoções. Biblicamente, o termo é muito mais rico. Em seu livro Ídolos do Coração, Elyse Fitzpatrick mostra que o coração consiste na nossa mente (pensamentos, crenças, entendimento, memórias, julgamentos, consciência e discernimento), afeições (anseios, desejos, sentimentos) e vontade (a parte de nós que decide as ações que fazemos). O coração é o “homem interior”. A vontade é especialmente importante quando estudamos sobre perdoar de coração. Considere a parábola do servo impiedoso em Mateus 18.21-35:
Pedro, aproximando-se, perguntou a Jesus:
— Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes?
Jesus respondeu:
— Não digo a você que perdoe até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o Reino dos Céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos. E, passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo ele, porém, com que pagar, o patrão ordenou que fossem vendidos ele, a mulher, os filhos e tudo o que possuía e que, assim, a dívida fosse paga. Então o servo, caindo aos pés dele, implorava: “Tenha paciência comigo, e pagarei tudo ao senhor.” E o senhor daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem denários. Agarrando-o, começou a sufocá-lo, dizendo: “Pague-me o que você me deve.” Então o seu conservo, caindo aos pés dele, pedia: “Tenha paciência comigo, e pagarei tudo a você.” Ele, porém, não quis. Pelo contrário, foi e o lançou na prisão, até que saldasse a dívida. Vendo os seus companheiros o que havia acontecido, ficaram muito tristes e foram relatar ao seu senhor tudo o que havia acontecido. Então o senhor, chamando aquele servo, lhe disse: “Servo malvado, eu lhe perdoei aquela dívida toda porque você me implorou. Será que você também não devia ter compaixão do seu conservo, assim como eu tive compaixão de você?” E, indignando-se, o senhor entregou aquele servo aos carrascos, até que lhe pagasse toda a dívida. Assim também o meu Pai, que está no céu, fará com vocês, se do íntimo não perdoarem cada um a seu irmão.
Nessa parábola, vemos que o perdão sempre tem um custo para quem perdoa. Perdoar os nossos pecados custou a vida para Jesus! Da mesma forma, na economia de Deus há sempre um custo para quem não perdoa (Mt 6.15).
O que é, então o perdão bíblico? Jay Adams, no Manual do Conselheiro Cristão, destaca que perdoar envolve fazer três promessas.
1- Prometo não levantar novamente o assunto com você para acusá-lo. O exemplo que Deus nos dá é que Ele não levanta mais os nosso pecado (Jr 31.34; Hb 8.12, 10.17). Não que Ele literalmente os esqueça, mas Ele escolhe não trazer repetidamente à tona os pecados perdoados.
2- Prometo não levantar o assunto com outra pessoa para usá-lo contra você. Isso é uma promessa de não pecar com fofocas (Rm 1.29; 1Tm 5.13).
3- Prometo não remoer o assunto em minha mente. Quando voltamos repetidamente a um assunto em nossa mente, podemos nos entregar à amargura, o que é pecado (Ef 4.31).
Cada uma dessas promessas é uma questão de decisão, não de emoção. Nós decidimos fazê-las para adorar e glorificar a Deus (1Co 10.31) mediante nossa obediência, porque Ele nos perdoou em Cristo Jesus (Ef 4.31, 32) e abençoa aquele que perdoa. Essas promessas, portanto, não dependem das fortes emoções que gritam em nós contra o perdão.
Dizer a nós mesmos, ou aos outros, “Não se sinta assim!” simplesmente não ajuda em nada. Ao invés disso, entendemos que perdoar pode ser um processo e, após a decisão inicial, podemos acrescentar mais duas promessas.
4- Prometo que quando os sentimentos dolorosos vierem à mente, agirei com base na decisão de perdoar e me lembrarei das primeiras três promessas para, em seguida, redirecionar meus pensamentos para Filipenses 4.8. Farei com que “tudo que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe” seja o que irá ocupar o meu pensamento.
5- Prometo tratá-lo com base no relacionamento restaurado com você. Isso não exclui possíveis consequências como, por exemplo, um marido abusivo será indiciado pelos crimes cometidos ou uma criança desobediente perderá privilégios. O ato de perdoar implica o compromisso de procurar a reconciliação, mas não elimina possíveis consequências do pecado.
Com essas duas promessas, reconheço que a ofensa foi real e reafirmo as primeiras três promessas. Pode ser inicialmente muito difícil, mas se eu fizer disso um hábito, os meus sentimentos de amargura e ira, entre outros sentimentos que podem acompanhar a situação, irão se aquietar com o passar do tempo. Mais adiante, poderei até mesmo “esquecer”.
Quando devemos perdoar? Por duas vezes essa passagem mostra o perdão concedido após uma confissão feita pela pessoa que se encontra em dívida e uma promessa de fazer a devida restituição. O que fazer, porém, se a pessoa não confessar nem se arrepender, ou se ela não o puder nos pedir pessoalmente perdão por algum motivo? Em casos como esses, será que eu deixo de perdoar? Não, à luz de Mateus 6.15, não devo deixar de perdoar. Deus nos dá algumas opções.
- Pode haver lugar para simplesmente perdoar uma ofensa num acordo apenas entre Deus e mim, e não permitir que aquele pecado continue a ocupar minha mente (Pv 19.11). Entretanto, se um irmão em Cristo continuar a repetir determinada ofensa, precisamos tratar a questão em benefício da santificação daquela pessoa.
- Podemos também ficar limitados ao acordo apenas com Deus em certos casos como, por exemplo, se a pessoa já faleceu.
Quando se fizer necessária uma confrontação para o bem do irmão em Cristo e de outras pessoas, devemos primeiro tirar a trave do nosso próprio olho (Mt 7.1-5), confessando os nossos pecados antes de tratar a situação. Se o ofensor estiver disponível, devemos chamá-lo para uma conversa em particular (Mt 18.15). Se um descrente rejeitar o diálogo, talvez tenhamos de abandonar nossa tentativa de reconciliação. Se isso acontecer com um crente em Cristo, devemos aplicar Mateus 18.16 e levar conosco outro irmão em Cristo em uma nova conversa.
Entre cônjuges, o marido deve ser o primeiro a se humilhar, confessar e pedir perdão. Esse é o modelo de liderança de Deus que ele deve seguir com sua esposa, incluindo a confissão de pecados (Ef 5.25; Lc 9.23). Se ele se recusar, a esposa deve ter a iniciativa em obedecer a Cristo. Talvez o Espírito use a obediência dela para o motivar. No entanto, os casos de abuso por parte do marido merecem atenção especial e devem ser considerados à parte.
Suponha que alguém peque, confesse, arrependa-se, receba perdão, mas continue a repetir o erro. Se levantarmos a questão, estaremos violando a primeira promessa? Não se nós apontarmos para o pecado para ajudar o outro a substituir um hábito pecaminoso por um hábito coerente com a vida cristã (Ef 4.22-24). Podemos começar dizendo: “Estou preocupado com um padrão habitual que tenho observado em sua vida e com como você tem lidado com isso”. Esteja preparado para a resistência, e mantenha-se calmo e bondoso, mostrando que você quer ajudar.
Essas cinco promessas são significativas, elas têm um custo para nós, mas NÃO são opcionais. “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6.12). Se nos recusarmos a perdoar, ficamos em dívida para com Deus.
Esse tipo de perdão é muito difícil? Sim, e ele nos faz perceber que o perdão genuíno, o perdão de coração, é tanto um ato de vontade quanto algo sobrenatural, possível porque Deus nos capacita. Nós sempre precisamos do Espírito Santo para nos ajudar a viver o perdão bíblico no relacionamento uns com os outros. Se nós o pedirmos, Deus terá prazer em nos ajudar a praticar o perdão.
Se praticarmos de boa vontade o perdão de coração em todo o processo, inclusive sendo bondosos no tratar com os ofensores, agradaremos a Deus e nos tornaremos mais parecidos com Cristo.
Além disso, Deus fortalecerá nosso “músculo do perdão” para possíveis testes ao longo da vida. Deus também nos preparará cada vez mais, pela nossa obediência fiel, para podermos ajudar outros que enfrentam situações nas quais precisam praticar o perdão (1Co 1.3, 4).
Vamos colocar em prática o perdão bíblico!
Robert Kagels é conselheiro certificado pela Association of Certified Biblical Counselors (ACBC) e atua como conselheiro bíblico na Valley Community Baptist Church em Avon, CT.
Original: Forgiveness from the Heart
Artigo publicado pela Association of Certified Biblical Counselors. Traduzido com autorização.
Tradução de Patrick D. Amorim
Revisão e adaptação para o português por Conexão Conselho Bíblico