Quando os relacionamentos decepcionam — “Eu irei a Deus”

Bekka French

Amem uns aos outros. Levem os fardos uns dos outros. Perdoem uns aos outros. Estes são alguns dos mandamentos relacionais que Deus dá ao Seu povo. Com uma lista como esta, a comunidade cristã deveria ser a mais amorosa de todas. No entanto, infelizmente, os pecados que cometemos nos relacionamentos impedem essa mutualidade. Isso acontece especialmente quando olhamos uns para os outros como supridores de necessidades. Quando vemos nossos relacionamentos como uma fonte de satisfação de nossas necessidades, distorcemos o bom desígnio de Deus e Seus propósitos para a vida em comunidade. Precisamos entender o propósito da vida em comunidade e o que fazer quando, inevitavelmente ela nos desaponta.

Cumpram a lei de Cristo
Qual é o propósito da vida em comunidade? Muito pode ser dito aqui, mas para manter a brevidade, diremos simplesmente que Deus estabeleceu a vida em comunidade como um meio de conhecermos a Ele e desfrutarmos dEle. Como portadores da Sua imagem, nós representamos a Deus uns diante dos outros, cuidando uns dos outros com o propósito expresso de mostrar uns aos outros quem é Deus. A ideia de comunidade inicia-se com Deus, pois Ele habita em comunidade perfeita dentro da Trindade, e ela termina com Deus quando procuramos incentivar uns aos outros em direção às riquezas, maravilhas e glórias de Deus. Assim cumprimos a lei de Cristo (Gl 6.2).

Lembre-se das palavras de Jesus em João 15: a plenitude de alegria vem pela permanência no amor de Deus. Plenitude de alegria. Não é uma alegria parcial; ela é plena, do tipo “o meu cálice transborda” (cf. Sl 23.5). Como podemos conhecer esse tipo de plenitude? Permanecendo no amor de Deus. João 15 apresenta-nos uma bela progressão, mostrando-nos, inicialmente, que podemos permanecer no amor de Deus ao obedecê-lo. Muitas vezes, dizemos a nossos filhos que a obediência é doce, mesmo quando não parece. Para nós, ela é doce porque é por meio dela que permanecemos em Deus. Em seguida, Jesus nos diz exatamente como Ele quer que obedeçamos: amando uns aos outros. Portanto, o seu acesso à plenitude de alegria, à vida abundante, vem por meio de você amar aos outros. Isso não depende de ser amado pelos outros.

Às vezes, a vida em comunidade dá errado, e de maneira muito dolorosa, quando olhamos uns para os outros como uma fonte para a satisfação de necessidades pessoais. O mundo secular se esforça para convencer os cristãos de que temos necessidades emocionais inerentes que apenas outros seres humanos podem preencher: necessidades de segurança, respeito, sexo, amor e assim por diante. Mas quando olhamos para a Bíblia, nossa principal fonte da verdade, a base para a nossa antropologia, ela simplesmente não sustenta essa teoria. Deus nos criou necessitados dEle, e Ele nos diz como podemos preencher o vazio em forma de Deus que há em nosso coração. Todos os “tanques e copos vazios de amor relacional” ficam desesperadamente aquém da realidade de nossa necessidade do próprio Deus.

Se você já se envolveu no ministério com pessoas, você sabe que essa realidade fica gritante na profusão de relacionamentos rompidos. Nossas “necessidades não estão sendo satisfeitas” porque identificamos de forma errada a necessidade e a solução. Vamos aos outros famintos por aquilo que não podemos obter deles e, ao fazer isso, nós pecamos tanto contra eles quanto contra Deus.

Você foi feito para Deus. Cada aspecto daquilo que Ele criou, desde suas necessidades biológicas legítimas até o clamor dos desejos de seu coração por satisfação afetiva, têm o propósito de fazê-lo se dirigir a Ele. Como diz Jeremiah Burroughs, toda a ordem criada é um canal para nos levar a Deus. Sejam canais deficientes ou canais robustos e saudáveis, todos eles encontram seu propósito final em Algo além de si mesmos.[1]

O que fazer, então, quando os outros são um canal deficiente para nos conduzir ao relacionamento com Deus? Quando há desapontamentos e frustrações, quando o uns aos outros está deficiente ou até inexistente, quando o pecado domina a maneira de alguém interagir conosco? Faremos como o salmista faz: iremos a Deus.

A fonte da minha plena alegria
No Salmo 27, o salmista revela uma verdade preciosa em meio à realidade dos relacionamentos rompidos. Ele simplesmente diz: “Ainda que me abandonem pai e mãe, o Senhor me acolherá” (v. 4). Sente-se e pondere sobre a enormidade da realidade emocional presente aqui. Dois dos relacionamentos mais formativos em nossa vida – e, portanto, potencialmente devastadores – são os relacionamentos com pai e mãe. Todos nós experimentamos, em diferentes graus, os pecados dos nossos pais contra nós. Você pode imaginar o sofrimento de ser abandonado por seus pais? Talvez você o conheça muito bem.  Agora, complete a frase com qualquer outro relacionamento próximo: “Embora minha esposa me abandone…”, “Embora meus amigos mais queridos se voltem contra mim…”, “Ainda que meu filho me dê as costas e vá embora…” Os relacionamentos humanos nunca foram feitos para serem o ponto final, mas sim canais para a Fonte. Embora importantes, significativos, de peso e devastadores quando falham, eles não são nada mais que canais que podem falhar.

Não estou dizendo que os relacionamentos humanos são inúteis. Fomos feitos para viver em comunidade. No entanto, fomos feitos para viver em comunidade não para a comunidade como um fim em si, mas como um canal para nos guiar para a satisfação que Deus oferece nEle. Assim como toda a criação proclama a glória de Deus, assim como desfrutar da beleza de um panorama deve fazer nosso coração transbordar de alegria diante da glória de Deus, nossos relacionamentos também existem para exaltar a Deus e trazer plenitude de alegria ao nosso coração. É por isso que é angustiante quando os relacionamentos ficam aquém de seu propósito. Mas quando os relacionamentos falham, ainda podemos ir a Deus, Aquele que pode ser encontrado por nós independentemente de quem quer que seja o canal deficiente em dado momento da nossa vida. Fomos feitos para muito mais do que aquilo que um relacionamento humano pode oferecer. Nós fomos feitos para Deus.

Portanto,

Acalme-se minha alma quando os amigos mais queridos partirem
[e aqui eu acrescentaria ‘desapontarem-me gravemente’]
e tudo ficar escuro no vale de lágrimas.
Então você conhecerá melhor Seu Amor, Seu Coração
[oh que alegria! Isso desperta o seu coração para que o abandono relacional proporciona melhor conhecimento do coração de Deus? Certamente isso é o que nosso Salvador experimentou no Jardim do Getsêmani quando Seus amigos falharam e fugiram.]
quem vem para aliviar sua tristeza e seu medo.[2]

Quando você se sentir devastado por seus relacionamentos, seguir em frente será um esforço consciente e, às vezes, hercúleo. Ir a Deus não parecerá inicialmente uma escolha doce ou satisfatória. São muitos os dias em que penso: “Fulano não se importa comigo, não me vê”, e essa dor é real. Alguns dos meus relacionamentos mais queridos já me machucaram ou me decepcionaram gravemente por causa do pecado ou simplesmente por suas próprias limitações. Sei que eu também fiz o mesmo com outros. No entanto, sempre que me voltei dessas decepções e investi todo meu ser em ir a Deus, nunca voltei de mãos vazias. É por isso que o salmista chama Deus de “fonte da minha plena alegria” (Sl 43.4). Então, quando você sentir essa dor, corra para Deus e não pare nem descanse até que você possa dizer com o salmista: “irei ao altar de Deus, a Deus, a fonte da minha plena alegria”.

Perguntas para reflexão
1. De modo prático, como você pode, “ir a Deus” no dia a dia?
2. Como você pode se satisfazer no Senhor para que mesmo se os relacionamentos o decepcionarem, você possa se satisfazer em Deus e continuar a cumprir o seu papel no uns aos outros?


[1] BURROUGHS, Jeremiah. A rara joia do contentamento cristão. s.l.: Caridade Puritana, 2020.

[2] Kathrina Von Schlagel, “Be Still My Soul”. Disponível em https://hymnary.org/text/be_still_my_soul_the_lord_is_on_thy_side>. Tradução livre.


Bekka French é mestre em Aconselhamento Bíblico (MABC) por The Master´s University e é certificada pela Association of Certified Biblical Counselors (ACBC). Ela aconselha em sua igreja local e trabalha como orientadora de alunos no departamento de aconselhamento bíblico do Southern Baptist Theological Seminary.


Original do artigo: “I Will Go to God”: Running to God When Relationships Disappoint
Artigo publicado pela Biblical Counseling Coalition.  Traduzido com autorização.
Tradução Carla Silva. Revisão e adaptação para o português por Conexão Conselho Bíblico