Limitações físicas, teologia do corpo e implicações para o aconselhamento

Michael Emlet

O quanto você está sintonizado com o seu próprio corpo no dia a dia? Ficamos mais conscientes do nosso corpo quando nos encontramos em uma das extremidades do espectro da dor e do prazer. Nós “sabemos” que somos corpo quando enfrentamos dor e limitações no funcionamento do corpo. Também “sabemos” que somos corpo, e gostamos disso, quando temos experiências sensoriais como uma comida gostosa, uma música que nos agrada, intimidade sexual, entre outras. Seja associada a uma limitação dolorosa ou a uma sensação prazerosa, queremos que nossas experiências como criaturas dotadas de um corpo sejam entendidas por meio da lente das Escrituras. Se não formos guiados cuidadosamente pelas Escrituras, é muito fácil sermos atraídos para um entendimento distorcido que exalta ou rebaixa a importância do corpo. Isso pode levar a possíveis distorções no ministério de aconselhamento voltado para aqueles que têm lutado com limitações ou necessidades físicas específicas.

Uma perspectiva biblicamente equilibrada
No contexto do ministério, um entendimento de que “o corpo é tudo”, pelo menos do ponto de vista operativo, leva a um foco quase exclusivo em conforto e alívio do físico. Isso pode estar associado a uma suposição de que as pessoas que estão sofrendo com seu estado de limitações ou dor física têm pouca ou nenhuma responsabilidade diante de Deus. Elas parecem ser sofredoras muito mais do que pecadoras. Por outro lado, um entendimento de que “o corpo é nada”, novamente do ponto de vista operativo, leva a um foco quase exclusivo no cuidado com a alma. O foco de ação no aconselhamento para a ser levar as pessoas a Cristo e discipulá-las, enquanto o sofrimento é visto primordialmente como um caminho para a santificação, não como algo a ser lamentado.

Qualquer um desses dois extremos, na verdade, não reflete a complexidade com que Deus criou o homem. Como as Escrituras nos dão uma visão equilibrada do corpo?

Desde o início da criação, o ser humano é constituído claramente de um aspecto material: “Então o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente(Gn 2.7) e “no suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, pois dela você foi formado; porque você é pó, e ao pó voltará” (Gn 3.19). O teólogo John Murray lembra-nos de que “a maneira bíblica de expressar esta verdade não é que o homem tenha um corpo, mas que o homem é corpo”.[1] O corpo é bom e possui limitações em sua constituição que não são pecaminosas. A Queda nos afetou integralmente – somos seres caídos, corpo e alma – e isso se manifesta tanto em forma de sofrimento quanto em forma de pecado. Com relação ao sofrimento, cada forma de fraqueza do corpo e incapacidade, seja presente desde o nascimento ou adquirida mais adiante na vida, é um efeito generalizado da Queda. Com relação ao pecado, o corpo age como mediador para o coração/espírito. Murray observa: “Embora não seja a sede do pecado, o corpo torna-se atuante na depravação. Ele se torna o agente do pecado e seus membros instrumentos de iniquidade para o pecado (Rm 7.5; 6.19)”.[2] Nosso corpo e o meio pelo qual realizamos o mal ou o bem neste mundo.

Nosso corpo e a obra redentora de Jesus
Como seres dotados de um corpo, de que forma os crentes em Cristo vivenciam a obra redentora de Jesus? Em primeiro lugar e acima de tudo, o nosso corpo é agora templo do Espírito Santo (1Co 6.19). Isso aplaina o terreno, não é? Relativiza os pontos fortes do corpo e dignifica as fraquezas e limitações do corpo. Vemos no ministério de Jesus um compromisso de trazer alívio ao sofrimento físico (Mt 4.23, 24; At 10.38). Além disso, a nossa experiência de redenção é uma experiência de crescimento e de gemido. Há um aspecto de “já e ainda não” em nossa redenção, que diz respeito também ao nosso corpo. Nós crescemos em Cristo, agora, enquanto praticamos nossa obediência por meio do corpo. Nós apresentamos nosso corpo a Deus como instrumento de justiça (Rm 6.13; 12.1; 1Co 6.20; 1Ts 4, 5). Ainda assim, gememos porque a trajetória geral do nosso corpo é de declínio. Todo ser humano experimenta o declínio físico em algum ponto da vida. Não importa o quanto procuramos aliviar um sofrimento físico e superar uma deficiência, a morte nos aguarda. O homem exterior se desgasta (2Co 4.16). Então gememos, ansioso pela redenção do nosso corpo na habitação celestial (2Co 5.2; Rm 8.22, 23).

A satisfação desse anseio é onde a história da redenção alcança sua conclusão. Como sabemos que o que nos aguarda no futuro? Nós olhamos para Jesus, o segundo Adão, o primogênito entre os mortos (Cl 1.18). Temos uma esperança encarnada! Nossa esperança é a ressureição dos mortos e não a limitada ideia grega de imortalidade da alma. O que é verdade para Jesus na Sua ressureição é verdade para nós (Rm 8.11; Fp 3.21; 1Co 15). Qual é o nosso destino? Seremos glorificados, aperfeiçoados tanto no corpo quanto na alma.

Implicações para o ministério de aconselhamento
Quais são algumas das implicações decorrentes deste fundamento bíblico teológico? Em primeiro lugar, no que diz respeito às fraquezas do corpo, somos mais parecidos uns com os outros do que diferentes uns dos outros. Como cristãos, somos criaturas caídas, mas redimidas em Jesus Cristo, que se encontram em diferentes estágios de decadência física. Esse é nosso ponto básico de identificação com aqueles que são mais obviamente afetados por fraquezas e limitações físicas do que nós. O título do livro de Stephanie Hubach sobre o assunto — Same Lake, Different Boat [Mesmo Rio, Barco Diferente] — expressa essa ideia de forma maravilhosa.[3] Todos nós vivemos no mesmo mundo danificado pela Queda, mas cada um de nós carrega manifestações diferentes desse dano, tanto no aspecto espiritual quanto no físico.

Em segundo lugar, o nosso ministério é dirigido a pessoas que, em termos de corpo e alma, não são uma coisa  ou outra, mas uma coisa e outra. Vamos desenvolver um pouco mais essa questão no que diz respeito tanto ao sofrimento quanto à santificação.

O corpo e o sofrimento. O cuidado voltado para o sofrimento físico, em suas diferentes dimensões, deve sempre estar presente no nosso ministério, mesmo que em sua forma básica o aconselhamento aconteça por meio de palavras. Procuramos sempre ministrar de forma integral. Algumas fraquezas e limitações físicas são óbvias como, por exemplo, a cegueira, a síndrome de Down, a paralisia de parte do corpo, o autismo severo. Outras fraquezas e limitações físicas são menos óbvias como as dificuldades de aprendizagem, a dor crônica. Seja qual for a  limitação ou fraqueza física, ela levanta uma bandeira amarela de atenção, que diz ao conselheiro: “Desacelere. Faça perguntas. Seja rápido para ouvir e lento para falar”.

Com um entendimento mais profundo da pessoa que está à nossa frente, nós nos aproximamos buscando aliviar o sofrimento físico o quanto podemos deste lado da glória, e mais aptos para atingir o coração.

O corpo e a santificação. Aqui vemos que um corpo com fraquezas e limitações é tanto um desafio/obstáculo em potencial para um crescimento espiritual quanto uma ajuda/contribuição para o crescimento espiritual. Em relação ao primeiro, o sofrimento físico pressiona o homem interior, testando e provocando o coração. Qual a reação do aconselhado quando está passando por sofrimento físico?

Por outro lado, um corpo com fraquezas e limitações também pode contribuir para o crescimento espiritual. Às vezes, um corpo relativamente forte torna mais difícil depender de Jesus no dia a dia. Conheço crentes portadores de significativas limitações físicas que, frequentemente, vivenciam suas fraquezas físicas e necessidades específicas como o cadinho para uma dependência extrema de Jesus. Eles realmente se apegam às palavras de Jesus: “Sem mim vocês não podem fazer coisa alguma” (Jo 15.5). Ter um corpo com fraquezas e limitações também pode suscitar fortes esperanças quanto à ressurreição. Não há a ilusão de que esta vida é muito boa e um apego àquilo que ela nos dá. Nossos irmãos que lidam com maiores limitações físicas esperam e gemem por algo melhor. Deste modo, eles nos ensinam, apontando-nos em direção a um futuro certo no qual “o que é corruptível se revestir de incorruptibilidade e o que é mortal, de imortalidade” (1Co 15.54).

Perguntas para reflexão
1- Qual é a sua sintonia com as lutas físicas daqueles que você aconselha,  e como os atinge levando em conta a interação do corpo com o coração?
2- Como você está procurando levar a essas pessoas a esperança bíblica e o auxílio que vem de Jesus Cristo?


[1] John Murray, Collected Writings, Volume 2 (Edinburgh: Banner of Truth, 1977), p. 14-15.

[2] Ibid., p. 14-15.

[3] Stephanie Hubach, Same Lake, Different Boat: Coming Alongside People Touched by Disability (Phillipsburg, NJ: P&R, 2006).


Michael Emlet atuou como médico de família por 12 anos antes de ingressar na CCEF como conselheiro e membro do corpo docente. Além da sua formação como médico na Universidade da Pensilvânia, ele se formou no Westminster Theological Seminary.



Original: Disability and a Theology of the Body
Artigo publicado pela Biblical Counseling Coalition
Tradução: Rebeca Ferreira
Revisão e adaptação: Conexão Conselho Bíblico
Usado com permissão.