Michael Emlet
Vivemos em uma época em que cada vez mais problemas da vida são atribuídos a alguma disfunção cerebral. No contexto da comunidade psiquiátrica, a medicação psicotrópica (psicoativa) é apresentada como um aspecto importante, se não o mais importante, do tratamento. Na compreensão popular, ela é frequentemente o tratamento de escolha. Como conselheiros bíblicos, qual deveria ser nosso entendimento dessa importante questão?
Certamente, é crucial o diálogo com os profissionais da saúde sobre os aspectos biomédicos desses medicamentos, incluindo as evidências baseadas em pesquisas sobre sua eficácia (ou não), os efeitos colaterais e os tratamentos alternativos disponíveis. Devemos estar bem informados no que diz respeito à medicina. No entanto, como cristãos, também precisamos de uma perspectiva bíblica para orientar o uso ou ou não de medicamentos psicoativos.
O fundamento: uma antropologia que considera o corpo e a alma
Como devemos avaliar o uso da medicação psicoativa de uma perspectiva explicitamente bíblica? Afinal, você não encontra “uso de Prozac” na sua concordância bíblica! O melhor ponto de partida é lembrar que Deus nos criou como criaturas com corpo e espírito (Gn 2.7; Ec 12.7; Mt 10.28). Somos seres espirituais em um corpo físico, criados para honrar e adorar a Deus. Somos simultaneamente corpo e alma. Isso significa que no aconselhamento é obrigatório dar atenção a ambos os aspectos da pessoa, o físico e o espiritual. Desconsideramos profundamente a nossa humanidade quando ignoramos o “coração” — nossa disposição moral e espiritual (Pv 4.23; 27.19) — e as responsabilidades que o acompanham. Da mesma forma, seria uma profunda desconsideração da nossa humanidade ignorar o corpo e os pontos fortes e fracos que o acompanham. Lançado esse fundamento, veremos três perspectivas bíblicas que ajudam a moldar nossa abordagem sobre a medicação psicoativa.
Aliviar e redimir o sofrimento
Em primeiro lugar, tanto o alívio do sofrimento quanto o crescimento do caráter cristão em meio ao sofrimento são importantes.
Com a vinda de Jesus Cristo a este mundo, é possível perceber o coração de Deus com relação ao sofrimento de duas maneiras. Primeira, faz parte do desígnio de Deus aliviar o sofrimento que surgiu como resultado da queda, conforme evidenciado pelo ministério de cura de Jesus (Mc 1; At 10.38). Claramente, uma marca de Seu ministério foi o alívio do sofrimento. Ainda assim, é possível identificar um segundo aspecto no ensino do Novo Testamento: o desígnio de Deus de redimir a experiência de aflição dos crentes mediante sua união com Cristo, o Servo Sofredor. Em virtude de estarmos em Cristo, Deus opera em meio ao nosso sofrimento, conformando-nos à imagem de Cristo. Veja Romanos 8.16-25; 2Coríntios 1.8-10; 4; 12.9, 10; Filipenses 3.10, 11; Colossenses 1.24; Tiago 1.2-5 e 1Pedro 4.12, 13.
Embora aliviar o sofrimento seja uma prioridade, buscar o mero alívio sem uma visão da agenda transformadora de Deus em meio ao sofrimento fica aquém do desígnio de Deus para o bem-estar do homem. Devemos ficar contentes com o alívio dos sintomas, mas devemos buscar simultaneamente o desenvolvimento da diversidade do fruto do Espírito: perseverança no meio do sofrimento, uma profunda confiança no amor do Pai, uma esperança mais firme, amor pelos irmãos e gratidão.
O que isso significa em relação ao uso ou não de medicamentos? Não seja rápido demais em abandonar o sofrimento como se o alívio imediato das provações fosse a única boa obra operada por Deus. E não pense que é mais “espiritual” abster-se de fazer uso dos medicamentos, como se trabalhar no nosso caráter por meio do sofrimento fosse a única boa obra operada por Deus. Ele está interessado tanto em aliviar o sofrimento quanto em trabalhar nosso caráter.
Dádivas ou deuses?
Em segundo lugar, os medicamentos são dádivas da graça de Deus e os medicamentos, como qualquer outra dádiva de Deus, podem ser usados de maneira idólatra.
O desenvolvimento dos medicamentos psicoativos é uma boa dádiva de Deus, uma extensão da função de governar sobre o mundo criado, que Ele deu à humanidade por ocasião da criação (Gn 1.26-28; 1Co 10.31). No seu melhor, a descoberta científica explora o mundo de Deus em toda a sua impressionante complexidade e procura aliviar um pouco da miséria que experimentamos como criaturas caídas em um mundo caído. Como tal, devemos receber os medicamentos com gratidão e humildade, mas sem esquecer Aquele que deu o talento necessário e a sabedoria aos cientistas e médicos para descobrir esses medicamentos.
Conheci pessoas que, em vez de encarar a medicação como apenas um componente de uma abordagem de tratamento corpo-alma, viam-na em termos quase salvíficos. Por definição, isso é idolatria: atribuir poder supremo de ajuda a algo além de nosso Deus trino (Jr 2.11-13). Se alguém acredita que o mais importante é ajustar a dose de seu Paxil, e considera a discussão de coisas espirituais supérfluas ou irrelevante, estamos diante de um problema. Dádivas não devem se tornar deuses.
Motivações boas e ruins
Em terceiro lugar, uma pessoa pode ter motivações erradas para querer fazer uso de medicamentos e outra pessoa pode ter motivações erradas para não querer fazer uso dos medicamentos.
Muitas vezes, a questão mais importante no uso dos medicamentos é a atitude da pessoa a quem você está ministrando. A questão não é a medicação psicotrópica ser algo em si mesmo “bom” ou “ruim”. Em vez disso, muitas vezes, o que faz a diferença é como a pessoa entende e lida com esse possível tratamento. As motivações são importantes (Pv 16.2; 1Co 10.31; Tg 4.1-3). Conversei com pessoas que querem uma prescrição de medicamento de imediato, sem querer examinar realmente seus desejos, medos, pensamentos, escolhas e estilo de vida. Também conversei com pessoas que resistem à recomendação de considerar uma avaliação para possível uso de medicamentos, também por razões auto-orientadas.
Quais são as razões problemáticas para querer fazer uso de medicação? Uma razão pode ser a exigência de alívio imediato, juntamente com a falta de interesse em sondar os possíveis problemas subjacentes. Uma segunda motivação questionável para querer fazer uso de medicação envolve ceder às pressões dos outros. A família e os amigos podem pressionar ao uso de medicamentos devido ao o desconforto que sentem por ver o sofrimento de seu ente querido. Às vezes, essa pressão reflete um desejo egoísta de ter seu ente querido de volta ao normal para que a vida seja mais fácil para todos.
No entanto, existem também razões problemáticas para não querer fazer uso dos medicamentos. A resistência à medicação pode ser uma questão de orgulho e autossuficiência: “Eu deveria ser forte o suficiente sem medicação”. Ou a versão mais espiritual: “Confiando mais em Deus, eu deveria conseguir sair dessa sem medicação”. Outra razão pode ser o medo da desaprovação e do julgamento dos outros: “O que as pessoas pensariam de mim?”. Ainda outra preocupação é vergonha: “Alguma coisa está seriamente errada comigo se eu tiver que tomar este medicamento”.
Juntando o que vimos até aqui
Consideradas essas perspectivas bíblicas, qual deve ser nossa atitude em relação ao uso de medicamentos psicoativos? Espero que você tenha percebido que não há uma resposta “certa” ou “errada”. Não se trata de um algoritmo simples. Pelo contrário, o uso desses medicamentos é uma questão de sabedoria e precisa ser tratada individualmente com aqueles a quem aconselhamos. Sempre existirá uma mistura de prós e contras, custos e benefícios para considerar cuidadosamente com os portadores da imagem de Deus, possuidores de corpo e alma, que procuram nossa ajuda. Devemos perguntar: “O que parece mais sensato para essa pessoa em particular, com essas lutas específicas e neste dado momento?”
Muitas vezes, lidamos com o sofrimento da pessoa sem o uso de medicação. No entanto, em alguns casos, depois de fazer essa pergunta, recomendamos uma avaliação clínica para considerar o uso de medicação como parte de uma abordagem holística da luta que ela está vivenciando. Sou mais propenso a recomendar uma avaliação clínica quando os sintomas são graves e persistentes ou os sintomas não estão diminuindo apesar da resposta positiva da pessoa ao aconselhamento bíblico.
As Escrituras contêm ensinos suficiente para desenvolvermos uma perspectiva bíblica sobre os medicamentos psicoativos. Reconhecendo que somos criaturas que possuem corpo e espírito, as Escrituras equilibram sabiamente os vários aspectos do ministério pessoal, dando atenção aos fatores somáticos e espirituais no cuidado daqueles que Deus nos chamou para aconselhar. Isso significa que não exaltamos nem desconsideramos o papel dos medicamentos psicoativos.
A medicação pode ser uma parte apropriada e até necessária ao cuidar de uma pessoa, dependendo da natureza específica do problema. Mesmo se considerarmos a medicação psicoativa como um possível elemento em uma abordagem ministerial abrangente, sempre procuraremos trazer as riquezas da redenção de Cristo para a vida das pessoas. Seja com a ajuda de medicamentos, ou sem eles, o objetivo é sempre ajudar a pessoa a crescer em amor a Deus e ao próximo.
Perguntas para reflexão
Qual é a sua abordagem atual ao discutir o papel dos medicamentos psicoativos com seus aconselhados?
Qual o entendimento bíblico que orienta sua maneira de pensar sobre esse assunto?
Para ir mais a fundo no assunto
Para uma abordagem completa e profunda do assunto, consulte o livro de Michael Emlet Descrições e Prescrições.

EMLET, Michael R. Descrições e prescrições: uma perspectiva bíblica sobre os diagnósticos e medicamentos psiquiátricos. Eusébio, CE: Peregrino, 2018. 127 p.
Links: Livro impresso
TOC, TDAH, Transtorno Pós-Traumático e Transtorno Bipolar. Estes não são apenas diagnósticos do DSM; eles fazem parte do nosso vocabulário cotidiano e da compreensão das pessoas. Como cristãos, o que devemos pensar a respeito dos diagnósticos psiquiátricos e os tratamentos a eles associados? Não podemos nos isolar e simplesmente descartar essas categorias. Também não podemos aceitar todo o diagnóstico e tratamento psiquiátrico secular como se a Escritura fosse irrelevante para essas lutas complexas. Precisamos de uma abordagem equilibrada, biblicamente e cientificamente informada.
Michael Emlet exerceu a medicina durante 12 anos antes de se juntar ao ministério da Christian Counseling Educational Foundation (CCEF) como conselheiro e membro do corpo docente. Dr. Emlet é formado em medicina pela University of Pennsylvania e completou seu mestrado em divindade no Westminster Theological Seminary.
Outros livros de Michael Emlet disponíveis em português

EMLET, Michael. Conversa cruzada: onde a vida e a Escritura se encontram. São Paulo: Cultura Cristã: 2015. 192 p.
Links: Livro impresso – E-book – Resenha
Este livro pode ajudá-lo a ler a Bíblia e a “ler” as pessoas de maneira a promover o uso da Escritura centrado no evangelho e pessoalmente relevante na ministração a outros. Ele descreve uma maneira de usar as Escrituras para ajudar as pessoas a crescerem mais plenamente no amor a Deus e aos outros em meio às complexidades enfrentadas por elas na vida diária.
![Dores crônicas: vivendo pela fé quando o corpo padece (Série Aconselhamento Livro 19) por [Michael R. Emlet, Tiago J. Santos Filho, Antonivan Pereira]](https://m.media-amazon.com/images/I/41iBZJgzFwL.jpg)
EMLET, Michael. Dores crônicas: vivendo pela fé quando o corpo padece. São José dos Campos, SP: Fiel: 2019. 25 p.
Links: E-book
A dor crônica é diferente de outros tipos de dor física porque ela é incessante. É uma dor diária, implacável e desgastante para a qual não há vislumbre de um fim. É possível experimentar a graça e a ajuda de Deus mesmo em meio à dor permanente? Michael R. Emlet, médico e conselheiro, aborda uma visão geral dos aspectos fisiológicos da dor e, em seguida, passa a delinear a perspectiva de Deus sobre a dor crônica.

EMLET, Michael R. Santos, sofredores e pecadores: amando o próximo como Des nos ama. Eusébio, CE: Peregrino, 2021. 248 p.
Links: Livro impresso
É comum se deparar com situações desafiadoras envolvendo pessoas, mas não saber por onde começar. Por isso, o livro esboça um modelo de ministério do tipo uns aos outros baseado no modo como Deus vê e ama seu povo primariamente como pessoas santas, trazendo conforto ao sofredor e falando fielmente a verdade ao coração do pecador. Repleto de ilustrações diárias e de exemplos de aconselhamento, o livro de Emlet demonstra o que significa abordar os cristãos simultaneamente como santos, sofredores e pecadores. O autor abre as Escrituras diante do leitor e com base em seus longos anos de experiência em aconselhamento ajuda conselheiros, pastores e amigos a amarem os outros com sabedoria. Este guia para o ministério fornece uma estrutura geral para o auxílio sábio a qualquer pessoa, amando o outro da mesma maneira que Deus nos ama..
Original: A Biblical Understanding of Psychotropic Medication
Artigo publicado pela Biblical Counseling Coalition. Traduzido com autorização.
Tradução: Carla Silva
Revisão e adaptação: Conexão Conselho Bíblico