Cláudia Kriger
“Embora sendo Filho, ele aprendeu a obedecer por meio daquilo que sofreu.” (Hb 5.8)
Jesus é o modelo do perfeito Sofredor. Já no “Evangelho de Isaías”[1], capítulo 53, foi predito esse aspecto da sua humanidade, que tem desafiado gerações de pensadores cristãos com a seguinte questão: como poderia ser real o sofrimento do Deus vivo, onipotente e soberano sobre todas as coisas? Miríades de elaborações teológicas têm circulado pela cristandade, algumas delas bastante perigosas. Por exemplo, no segundo século da era cristã, houve uma disputa sobre a verdadeira humanidade de Cristo e uma das vertentes afirmava que ele não havia encarnado no sentido lato da palavra, um tipo de pré-gnosticismo que foi refutado e condenado no Concílio de Calcedônia, em 451.
Os gregos tinham uma perspectiva distinta sobre os seus deuses. A chamada apathéia, de onde deriva o termo “apatia” em português, era o estado perfeito, a “virtude” da total incapacidade de as divindades olímpicas se identificarem ou se deixarem afetar pela realidade humana. Segundo este ponto de vista, por ser essencialmente a encarnação de Deus, o Espírito perfeito, Jesus não poderia teoricamente se sujeitar às mazelas que o confinamento ao corpo prevê para os humanos: doença, cansaço, fome, sono, apelos sexuais etc − indícios da inferioridade da matéria em relação ao espírito, que configuram um ambiente indigno para a divindade absoluta. Assim, o Jesus terreno teria apenas aparência humana: seria uma entidade cuja essência divina não se submeteu de facto à realidade terrena e, portanto, nunca sofreu de verdade. Essa heresia chamada docetismo infelizmente ainda ronda a mente de muitos no século XXI.[2]
Certo dia, em uma reunião de mulheres cristãs, ao meditarmos nas afirmações de Hebreus 4.15 e 5.8, uma delas perguntou: “Como pode ser verdade que Cristo entende nossos sofrimentos e tentações se ele, sendo Deus verdadeiro, não podia ser afetado por elas? Será que ele não era somente um tipo não real, uma aparência de homem?”. Assim como aconteceu com aquela minha amiga, pode ser que essa dúvida ronde sua mente também, especialmente se você, como eu, está vivendo momentos dolorosos, de muita pressão, e sua fé precisa de referenciais bíblicos estáveis para permanecer na luta sem desistir. Pode Deus realmente sofrer?
Das razões bíblicas para a total e absoluta humanidade de Jesus, escolho citar duas: a primeira é que a Escritura nos assegura ser ele Deus encarnado (Jo 1.1, 14-16) e explica claramente que a negação da encarnação real de Cristo é a negação do cerne da salvação conforme anunciada por Deus e pregada pelos apóstolos (cf. 1Jo 4.1-2). A crença na encarnação do Deus-Filho é crucial por ser imprescindível que o Redentor fosse absolutamente Deus para cumprir a exigência de um sacrifício perfeito e definitivo pelos pecados (Hb 7.24-28) e fosse totalmente humano para poder derramar seu sangue, morrer verdadeiramente e vencer a morte pela ressurreição, garantindo assim a nossa completa redenção, tanto espiritual como do corpo, na glória vindoura (Hb 10.8-14; 1Co 15.3-7;12-24). Como Deus-Homem, ele foi, ao mesmo tempo, sacerdote perfeito e sacrifício perfeito.
A segunda razão é sua plena identificação com a realidade do sofrimento do ser humano. Esse conceito é de tal grandeza que só pode nos levar a amá-lo cada vez mais. Pare e pense: o Filho Amado de Deus escolheu deixar a perfeição do céu, onde era servido por anjos, para se sujeitar a viver como um simples mortal. Também este é um pensamento teológico fundamental, a chamada kenosis,o esvaziamento voluntário de todos os seus privilégios de Deus com o propósito de modelar o que Paulo chamou de ”perfeita varonilidade”, ou seja, a “humanidade plena” conforme desejada por Deus até a realização da obra expiatória no Calvário (Fp 2.5-11; Ef 4.13). E é aqui que encontramos a rocha sobre a qual podemos edificar nossa esperança nas horas em que todas as estruturas parecem ter sido demolidas e nos faltam forças para continuarmos a crer e obedecer.
Um dos aspectos mais tocantes (e chocantes) da encarnação de Jesus foi a profundidade com que as realidades dolorosas do mundo caído tocaram o seu ser. O autor de Hebreus (que não foi Paulo nem Priscila) afirma que ele foi “tentado em todas as coisas, porém sem pecado” (Hb 4.15). Peço que tome tempo para ler cada uma das referências e verificar se você se identifica com algumas dessas situações de risco: Jesus chegou ao planeta como um bebê qualquer, indefeso e dependente (Lc 2.6) e em um país sitiado, subjugado pela Roma imperial. Ainda não tinha dois anos e correu risco de morte pela loucura de Herodes, precisando fugir e se exilar no Egito em companhia dos seus pais (Mt 2.13-16).
Quando adulto, foi tentado por Satanás quando se achava só, exausto e faminto, situações de alto grau de vulnerabilidade (Mt 4.1-11). Sofreu rejeição familiar e dos seus compatriotas (Mc 6.1-6). Foi chamado de ”agente do Diabo” pelas autoridades religiosas da época (Mt 12.22-24). Grande parte dos seus companheiros estava com ele pelo que poderia fazê-los lucrar (Jo 6.60-61). Sofreu a perda de seu grande amigo Lázaro e chorou ao ver a dor de suas irmãs (Jo 11.33-35). Foi mal-compreendido pelos seus discípulos, que o abandonaram na noite mais longa de sua vida (Lc 22.45). Foi abertamente traído por Judas Iscariotes (Lc 22.4) e três vezes negado por Pedro (Mt 26.69-75). Agonizou em oração no horto, quando sabia que a hora de sua morte era chegada (Lc 22.44). Foi acusado de traição por testemunhas compradas, julgado culpado e condenado à morte por judeus e romanos, no mais corrupto dos tribunais que já houve na história da humanidade (Mt 26.57-67; 27.11).
Na hora de sua difícil e escandalosa morte, quando foi pregado na cruz completamente nu, experimentou zombaria e teve sede (Mt 27.33-44). Seu corpo foi açoitado: pés e mãos atravessados por pregos de vinte centímetros de comprimento, seu lado furado por uma lança romana (Jo 19.34). Mas, de todas as dores, a maior se traduz no clamor elevado ao céu que lhe pareceu de bronze: “Eloí, Eloí, lamá sabactâni? (Mt 27.46-47). A grande ausência do seu Pai! Finalmente, morreu, solitário, a mais violenta das mortes, a qual era reservada para os piores bandidos. E ele era o Justo, o Santo, o Perfeito, o Grande Autor da salvação, o Filho do Deus vivo!
Que quadro sombrio! Enquanto escrevo, penso que meus sofrimentos, que são reais e me abalam a ponto de acordar à noite chorando e clamando por misericórdia e alívio da alma, tomam uma coloraturadiferente se colocados contra este escuro pano de fundo.
Algumas conclusões: 1) Além de concretizar o propósito divino primário de me salvar, a opção de Jesus por deixar seu conforto celestial e encarnar plenamente lhe permitiu ter empatia para comigo em minhas situações dolorosas. Em outras palavras, ele sabe na prática o que eu sinto quando a vida me dá “uma rasteira” (Hb 2.17). Todavia, o texto de Hebreus 5.8 me diz que “o Filho aprendeu obediência pelo que sofreu“. Mais do que mera identificação, Jesus, no papel de sumo-sacerdote de uma aliança indestrutível, além de se compadecer de mim, oferece-me condições de enfrentar a tempestade de modo digno do Senhor (Hb 2.18 e 4.14-15).
2) Em sua primeira carta, Pedro afirma que as experiências de sofrimento de Cristo nos dão um “gabarito” (hypogrammos), um modelo, para que possamos reproduzir sua conduta santificada em meio aos desafios de nossa caminhada cristã (1Pe 2.21). Suas dores reais nos propiciaram condições de encararmos as contrariedades da vida de forma diferenciada (leia o capítulo 2 inteiro de 1Pedro: ele ilumina o capítulo 3, que aborda o desafio da postura da esposa cristã sob pressão). Nas palavras de um antigo diretor do seminário onde estudei, quando observamos as reações de Jesus ao sofrimento injusto, passamos a considerar a oposição como oportunidade da ação divina em nós. Foi exatamente isso que o Homem-Deus fez: “Ele, pela alegria que lhe fora proposta, suportou a cruz, desprezando a vergonha e assentou-se à direita do trono de Deus. Pensem bem naquele que suportou tal oposição dos pecadores contra si mesmo, para que vocês não se cansem nem desanimem” (Hb 12.2b-3 – itálico da autora). Por isso, o autor inicia o capítulo nos dando a chave para lidarmos com a dor de forma correta: olharmos fixamente para Jesus, que, em sua humanidade, modelou e deu sentido ao sofrimento que aqui passamos (Hb 12.1-2 e 4; veja também Rm 8.28-29 e a conclusão paulina sobre a causa primária desta esperança: o amor inabalável de Deus por nós – Rm 8.31-39).
Sim, Deus sofreu de verdade! Jesus é o ”homem de dores e experimentado no sofrimento” anunciado por Isaías 53.3 (leia o capítulo todo). Suas dores não eram “acidentes de percurso” nem meras representações: os tormentos que viveu e o levaram à cruz eram reais e de tal grandeza que tornaram sua aparência desfigurada e desagradável ao olhar do profeta-vidente. Em sua perfeita humanidade, ele sentiu os golpes que os homens recebem por sua opção de andar longe do Pai. Contudo, sua vinda tinha propósitos definidos. Ele veio para sofrer por mim e por você. Por isso, ele sabe bem o que você e eu sentimos neste exato momento. Ele entende! Justamente por causa da Encarnação, não precisamos mais ficar caídas pelo caminho sob o peso da provação: o Deus-homem já trilhou a nossa apertada vereda antecipadamente e nos convida a acompanhá-lo na jornada. Ele sofreu, morreu e ressuscitou para nos dar vida, esperança e poder. Vamos a ele nesta confiança e receberemos misericórdia e graça na hora da maior tribulação. Ele está à distância de uma oração!
[1] Refiro-me ao livro de Isaías, profeta do século oitavo a.C., cuja mensagem é tão enfaticamente messiânica que se assemelha ao conteúdo dos evangelhos.
[2] Para uma excelente abordagem sobre o gnosticismo, leia o livro A Face de Deus, de Michael Horton, Editora Cultura Cristã. Ele mostra de forma explícita o quanto esta heresia antiga ainda se apresenta infiltrada no meio cristão evangélico contemporâneo. É um super alerta para todas nós.